Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

sábado, junho 20, 2009

Paradise reloaded




Cada fase do jogo nos induz a outras, cada superação denota outras possibilidades, sejamos crianças ou adultos, etapa por etapa, destravados, ganhamos créditos conosco para nos insinuar a outras jogadas, outras permutas, novas moedas, escambo psicológico.

Nas lan houses está a nossa casa digital, nossa comida, nossos remédios que atenuam nossa indiferença ante uma vida burocratizada, insossa, sem valores transcendentes, nada que se compare ao meu score num game, ao nick name conhecido nas vastidões virtuais, meu ego em bites, espalhado em pedaços de mentes que se combinam em outros lugares, sob a tutela de um software que quebra meu código fonte e me insere em outras redes, com outras configurações possíveis, numa regressiva autoconfiguração que supera meus dilemas existenciais, que rompe com meus bloqueios psicológicos, que me exaspera acima das mediocridades às quais fui programado para ser um cidadão civilizado, enfim revelado como herói de minha única saga, customizada para meus desejos incubados nesse cristal onde adormecia pré-digital.

Outros mundos, outras personas em máscaras e cavernas, em rituais sagrados que digitalizados nos sacramentam as novas revelações, abrem-se as portas da percepção não limitadas aos psicotrópicos, cuja ilusão tem hora e lugar para acabar, mas numa outra via, uma terceira via, cuja economia dos sentidos nos faculta acesso ao custo de nossa subversiva vida civilizada, um outro eu que ao fugir da rotina, após a execução de cada tarefa bem ajustada para a minima socialização esperada, parte rumo ao óraculo que nos espera parcimoniosamente nos games, instalados nos códigos-fonte dessa outra vida que ainda em vida nos redime, a cada conquista, a cada fase desbloqueada, a cada frase dita em gestos e imagens que, numa tela, nos mostram quem podemos – e desejamos – ser.

Ressurreição digital.

Eternidade digital.

Paraiso digital.

Os Campos Elíseos em tonalidades de ciano, magenta e amarelo, numa paleta de cores que nem os renascentistas pintaram. Além das realidades opacas que tímidas pinceladas copiosamente buscaram, agora existimos em campos de telas que são industrialmente construidas por celibatários programadores de som e vídeo, escribas dessa nova religião que se inscreve nos hipertextos subjacentes a cada movimento que o joystick faz, extensão do meu corpo atrofiado, resgatado da pre-digitalização, jurassicos que éramos até nos reconhecermos numa tela de cristal líquido que mostra o que desejamos ser. O ser desejado sendo o que realmente somos. Nada mais importa. Não existe a fome nesses campos de pixels, nem a miséria, nem os sindicatos, nem as corporações e seus políticos corruptos, apenas mocinhos e bandidos, o Bem e o Mal, o ideal platônico ao alcance de apenas alguns movimentos no mouse, ou no player, ou mesmo o corpo com sincronização digital numa tela de sensores de movimento. O orgasmo pleno, sem vacilações, a über-existencia, a pluri-presença, a hiper-cognição, os movimentos exatos para cada tarefa, sem hesitação, numa valsa sem tropeços, em perfeita sintonia com o meio que nos envolve, sem distanciamentos que embotem a nossa eficácia, totalmente ajustados para os fins a que nos propomos, em busca da maxima eficiencia para consecução dos nossos sonhos. Sem limites. Nirvana!

Tudo o que o século XX tateou com fotografias, filmes e obras de instalação em museus e parques públicos, agora é passado. Eis a nova aurora da humanidade sempre antes desejada, a era digital. A vida melhorada pelo homem ao coro dos anjos digitais, num céu melhor que qualquer anterior, nessa nova era clássica de jogos e simuladores de vidas que não são mais passadas, nem futuras, mas presentes. Enfim, a vida ideal no presente. Em camadas de memória cujos mnemônicos nos recriam numa outra estrutura de DNA, sem as fragilidades das instáveis combinações bioquímicas que jazem em nossas células.

Nosso DNA digital não é suscetível ao câncer. Podemos reescrevê-lo e melhorá-lo indefinidamente. Um corpo imperecível, a altura da ilimitada natureza de nossos desejos.

Vida sem morte. Seria ainda vida?