Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

sábado, agosto 26, 2006

Adaptação e Sobrevivencia

Cada vez mais fala-se, por qualquer motivo de comparação entre pessoas e empresas, como se pessoas fossem empresas em si mesmas, da adaptação das melhores espécies, da sobrevivência dos mais fortes, da empregabilidade dos mais competentes, do reconhecimento e sucesso dos melhores, da inteligência natural dos mais belos, da supremacia cognitiva dos que se dispuseram a condicionamentos prolongados em línguas estrangeiras ou em técnicas de solução de problemas, como físicos e matemáticos, e ainda fala-se nos privilégios que a natureza dá ao material genético de alguns em detrimento de outros, sejam insetos, sejam algas marinhas ou mesmo pessoas de diferentes etnias. Em suma, naturalizamos todos esses pré-conceitos sob o rótulo de verdades cientificas incontestáveis. E assim, rotulamos nossas vidas rumo ao sucesso, ou temerosamente caminhamos passo a passo ao fracasso solitário que nos invade quando se olha no espelho por mais de alguns segundos e pergunta-se: quem é essa pessoa do outro lado do espelho?

Pouco importa, desde que se mantenha rumo ao sucesso, certo? Sucesso é um termo que possui diversas significações, mas tem uma que considero mais adequada ao tema aqui em desenvolvimento: sucesso é um evento provável de acontecer, assim como o seu oposto, o fracasso. São variáveis boooleanas, do tipo 0 ou 1. Zero é quando não acontece o evento esperado, ou seja, fracasso. Ambos os eventos possuem probabilidades iguais de acontecer, 50% para cada um, do tipo cara ou coroa, ou homem e mulher num nascimento, ou ainda certo ou errado num teste de múltipla escolha. Apostar no sucesso de um evento qualquer é correr o risco de fracasso. Mesmo que se acredite numa distribuição de probabilidades do tipo 99 contra 1. Ambos podem acontecer. As ciências buscam essas distribuições de probabilidades em seus testes de laboratório para legitimar seus princípios, transformar seus sonhos e hipóteses em leis incontestáveis e, quem sabe até em patentes que renderão alguns milhões de royalties. Isso vale para químicas sofisticadas de grandes empresas farmacêuticas e igualmente para as leis da administração de empresas que garantem, ou ao menos prometem, o retorno aos acionistas dos recursos investidos em maquinas e pessoas - cada vez menos em pessoas. É tudo um jogo. Façam as apostas.

Apostamos em melhor adaptação ao meio, blindamos o carro, muramos as casas, colocamos vídeos e cercas eletrificadas, escolhemos a melhor igreja para freqüentar, as melhores escolas para nossos filhos, ingressamos nos melhores cursos de MBA, fazemos as melhores compras em termos de custo e beneficio, buscamos a supremacia, estar no topo, ser melhores cada vez mais, fugir ao outro evento igualmente provável: o fracasso, a frustração de nossas expectativas, cada vez mais infladas pelo nosso ego cada vez mais super-estimlulado pelas mídias, pelo cinema, pela moda, pela educação instrumental que nos torna super-competentes, pela vida comparativa-associativa que levamos nos clubes, nas empresas, nas famílias classe-media (ou seriam classe-mídia), enfim, superar os riscos desse jogo de final incerto e cada vez mais arriscado. Adaptação e sobrevivência.

Apostamos nas melhores empresas para se trabalhar, nas maiores e melhores, na qualidade de vida, na melhor carreira e na tão desejada empregabilidade (um voto voluntário de servidão que me faz pensar em sacerdócio e celibato da Idade Média, na devoção ao deus imaculado das catedrais ricas de ouro e incensadas ante a pestilência das ruas e casebres dos servos). Desejamos a servidão nas grandes empresas, aos sacerdotes-chefes-executivos, ambicionamos o bonus e o decimo-terceiro como a óstia consagrada pelo nosso sacrifício todo santo dia no holocausto de nossa autonomia e expressão individual. Como nos redime a covardia saber que estamos aceitos no seio dessa instituição sagrada chamada “trabalho assalariado”. E como nos rejubila saber que logo seremos sacerdotes do emprego, que serem empresários e empregadores, que nos beijarão as mãos os fieis súditos, os nossos empregados, esses a quem salvamos da perdição e da vida errante ao lhes assinar a carteira de trabalho e lhes outorgar o direito de serem atendidos em hospitais pagos pelo plano de saúde da empresa. Sobrevivência e adaptação.

Apostamos no enriquecimento pessoal como decorrência natural da nossa superioridade cognitiva, premio ao nosso saber-fazer competente, recompensa aos nossos naturais meios de observar e selecionar os melhores amigos, os melhores sócios e familiares. Um “darvinismo social” a que nos apegamos como a nossa bíblia sagrada, nossa palavra divina, nossos apóstolos e seus atos de fé. Ajoelhamos todos os dias diante do carro e da casa própria, lemos em oração o saldo de nossa conta bancária e louvamos a nós mesmos nos restaurantes e nas ceias de natal e ano novo. Brindamos nas santas-ceias de nossas famílias e amigos de trabalho. Lá fora jazem, no purgatório, os desempregados, essa sub-espécie que lembra a espécie humana, mas não somos nós semelhantes a esses. E jazem no merecido inferno os menos competentes, os desvalidos da ordem sacro-sócio-economica , os abortos da natureza que não podemos ter conosco, mas a quem as ONGs e as caridades corporativas atendem sob o codinome de responsabilidade social. Adaptação e adaptação.

Sobrevivemos a tantas coisas como espécie humana: ao fogo dos vulcões, aos dilúvios glaciais, aos movimentos de placas tectônicas, a epidemias de bactérias e vírus mutantes, aos bombardeios de asteróides e meteoros, aos aquecimentos e esfriamentos da calota terrestre, aos ventos solares que exorbitam a coroa solar e queimam atmosferas, a espécies animais agressivas, aos primórdios das civilizações tribais e guerreiras, aos holocaustos religiosos liderados por pessoas equivocadas na leitura dos sinais divinos e naturais, enfim, a séculos e séculos de brutalidade selvagem e natural, e ao final de toda essa jornada de sobrevivência estamos agora nos adaptando aos modos e costumes de uma espécie que surgiu como mutação de sua antecessora: os humanos-bem-sucedidos. Esses se consideram superiores aos demais e justificam através do uso da linguagem instrumental-cientifica a sua merecida boa-sorte perante os demais, acumulando casas e terrenos, riquezas em dinheiro e em títulos financeiros, em cargos e salários, em títulos acadêmicos e patentes de negócios próprios, num modo em que a indiferença que apresentam em relação aos demais humanos e as demais espécies desse planeta assume proporções globais. Estes são os que obtiveram sucesso no jogo da vida globalizada. Os demais, incluso seres humanos e demais espécies, são os que não obtiveram sucesso. Perderam a aposta, mesmo que não tenham participado no jogo. Adaptação do jogo para a sobrevivência de alguns, não de todos.

É a primeira vez na história humana em que se assume uma ética de redenção individual, feita para poucos escolhidos, que assumem discursos religiosos e científicos para justificar seus atos. Nem mesmo na segunda guerra mundial isso aconteceu, pois ambos os lados envolvidos na guerra acreditavam na expansão de seus valores e princípios para todos os demais, inclusive os vencidos. Não havia a indiferença manifestada nos dias de hoje pelos bem-sucedidos. Adaptação pela mutação. São mutantes, outros-novos-humanos, frios no calculo e de personalidade moldável conforme o ambiente em que ocupam, de fácil satisfação pessoal, com uma ética de resultados, adaptáveis ao jogo em qualquer cenário, sem restrições morais para as perdas impostas a quem qualificam como “incapazes”. São famílias-humanas-mutantes, que se satisfazem diante dos bens que consomem, sejam novos eletrodomésticos, viagens de turismo, comidas exóticas ou uma plástica que lhes devolva a jovialidade. Mutação como sobrevivência.

Sobreviveremos ao convívio com esses mutantes? Esses X-men, cuja química dos neuro-transmissores se molda cada vez mais ao ritmo de antidepressivos, redutores de apetite e cápsulas de redução do stress físico e mental? Como se adaptar a uma espécie que a tudo consome, ignorando os efeitos colaterais decorrentes desse super-consumo em relação ao meio em que habitam? Espécie que nomeia culpados e demoniza qualquer outra espécie, inclusive humanos, que ousem ameaçar sua paz de espírito, seus lares e suas casas de veraneio. Espécie que mimetiza na mídia os seus medos e as suas vontades, criando seus heróis e vilões nos cinemas e nos seriados de TV, exorcizando sua parcela de responsabilidade sob a lei do “carma” que aflige a todos os demais, que não devem ser de sua preocupação, mas sim do estado e do governo federal, esses sim, os vilões e demônios verdadeiros. O que eles poderiam fazer? E já fazem muito, não é verdade? São caridosos, são bons empregados, bons empregadores, pagam seus impostos em dia para que o Poder Publico dê conta do resto. Os demais são o “resto”. O continente africano todo, as massas de miseráveis no sudeste asiático, os desempregados do mundo ocidental e os emigrados nas periferias das grandes cidades do mundo, todos esses são “o resto”, incluindo as espécies animais e vegetais que padecem sob o efeito das ações coordenadas por essa outra espécie humana. Adaptação dos demais aos que "mutaram-se" para melhor.

Até quando iremos nos manter se adaptando a essa outra espécie de seres humanos vencedores, competentes e melhores por merecimento próprio? Até quando iremos aceitar essa nova ordem global, esse disfarce de democracia, essa indiferença crônica que se manifesta em relações cada vez mais superficiais e movidas pelo auto-interesse? Até quando nos manter passivos diante de tanta agressividade manifestada pelos mais-competentes, assertivos e líderes por natureza? Mas não é isso que se estimula nas escolas e universidades? Não é isso que se percebe nos “laços de familia” que vivemos e assistimos na TV? Adaptação de todos pela mutação de poucos.

Como confiar numa espécie nova e cada vez mais agressiva? Como não se manter em estado de alerta diante desse comportamento humano cínico e indiferente? Como não agir na direção de buscar uma natureza humana diferente, menos arrogante de suas ciências, mais fraterna e, por que não, menos competente e mais cooperativa, ciente de seus fracassos e limitações cognitivas, limitada como qualquer outra espécie viva? Nem todas as mudanças colaboram para a melhoria das espécies. Nem todas as mutações são bem sucedidas. Esse parece ser mais um caso de adaptação mal sucedida de uma espécie da Terra. Só que dessa vez essa nova espécie mutante ameaça todas as demais. Eles se julgam a elite, os eleitos, os melhores, os vencedores. E por isso mesmo não percebem o dano que causam aos demais a medida que “evoluem” nas suas vidas individualizadas. Seu sucesso amplia o fracasso do “resto”, a maioria, que sofre pela exclusão de representação perante empresas e governos, repletos de humanos-mutantes-bem-sucedidos.

Até quando isso vai se manter?

Com a palavra, os outros, o resto, os perdedores...antes que seja tarde demais...como em alguns paises africanos onde existem campos de refugiados portadores de AIDS...como em alguns paises industrializados na Ásia onde os danos causados a natureza são irrecuperáveis e as massas de habitantes rurais foram obrigadas a se refugiar nas cidades...ou ainda como em alguns centros urbanos do ocidente onde a marginalidade das populações jovens de desempregados lhes mantém sob a custodia de criminosos, também mutantes que, juntamente com governantes mutantes e ricos mutantes consumidores de drogas, não possuem o menor interesse em mudar o atual estado de direito desses excluídos.

Com a palavra, “o resto”...os seres ainda-humanos...neles reside a nossa esperança de sobrevivencia...nosso vestigio de humanidade...