Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

quarta-feira, novembro 25, 2009

Digitalicreationism

Digitalicreationism






Replicas digitais de modelos perfeitos aprimorados continuamente a cada renderizacao de gestos e imagens e sons. Não temos mais que nos preocupar com o ensino e a repetição para a permanência do ato, o qual uma vez digitalizado basta para ser eterno. O que vale para nosso entretenimento, vale para nossos relacionamentos, mulher e marido e filhos, chefes e subordinados, parentes e agregados, clientes e empresas, advogados e réus confessos, sonegadores e fisco, eleitores e candidatos, nomeie a lista de possíveis relações e teremos um menu completo a nossa disposição, prestes a ser customizado num software de 5ª categoria que caberia num CD a venda em qualquer esquina do mundo. Free market!



Celebridades como índice de nossa vida, como guias da nossa mente, tudo pode ser feito a qualquer momento, basta rodar no aplicativo certo. Os processos de virtualização da vida cotidiana não possuem limites. Estamos no Admirável Mundo Novo em que nossas replicas, nossos avatares, nossos personagens nos substituem completamente. Podemos responder e-mails com pensamentos que não são os nossos. Podemos criar perfis tão diversos sob o mesmo nome que faríamos inveja aos heterônimos de um certo Pessoa. Podemos desligar as pessoas, libera-las do terrível fardo da vida de enfrentamento, enfim livres dos mitos e seus anátemas, enfim resolvidos os insolúveis fantasmas do inconsciente, enfim uma vida digna e acessível a todos os habitantes do planeta com acesso a banda larga. Enfim, pos- heróicos , pos- históricos , pos – justificados, somos a potencia em ato do que sempre soubemos e hesitávamos em aceitar. Somos os melhores do mundo! Melhores que todas as gerações que nos precederam. Daqui pra frente, basta relaxar e ... download!


Como jamais imaginaríamos que isso seria possível nem que houvesse eras glaciais pos – nucleares, pos – atômicas, pos- metafísicas, pos- reveladas, que o apocalipse seria apenas isso: nossas copias replicantes pela rede mundial de computadores nos ameaçando de extinção. Como? E apenas um software pirata basta para nos fazer medo de que sejamos considerados obsoletos para todo o sempre. Mass extinction. Um download de outra espécie pos- humana, que não reclama de dores e fome, que não exige direitos, não faz conspirações nem revoluções, apenas funciona. Just do it.


Paradise is here! Heaven and Hell at the same time! And no LSD is required! Just HDTV ! Just 3-D movie screens! Just a bite in the Apple! This is it! Mesmo morto, o rei do pop vende mais discos, mais downloads, mais escândalos, mais filhos apócrifos, mais clones que dançam nas ruas os seus ritmos e os seus gritos padronizados faz mais de 25 anos. Eterno retorno garantido ou o seu dinheiro de volta! Tome lactobacilos vivos e defeque regularmente! Diga mais vezes sim e elimine de vez o não da sua vida! Nada será mais como era antes, pois nunca antes nesta vida eu tivera a sensação de que poderíamos superar a morte ainda em vida. Nada de garantias post-mortem. Nada de letras miúdas no contrato. Tudo as claras e explicitas! "I'm lovin' it"!


Megastores de sonhos, feiras livres de códigos-fonte, parques de diversão 3-D, ilhas de fantasia com personagens reais dos filmes que pirateamos na internet, cosplays com direito a personalidades singulares e efeitos superficiais similares a vida real pré-digital. Seremos a parodia perfeita de nossos pais, satirizando suas crises, suas vocações políticas, suas religiosidades, suas hipocrisias agora transformadas em cânone. Tudo disponível no Amazon, tudo revelado numa busca do Google, tudo ao alcance de nossos dedos, que digitam nossas vontades e nossas incontinências mentais, nossos espasmos de racionalidade guiados pelo falo virtual do Viagra, nossas dores de cabeça mantidas sob controle pelo Celebra, nossas reflexões melancólicas minimizadas graças ao Lexotan, nossas meninas guardadas na virgindade de seus scrapbooks, nossos varões iniciados em sexo virtual pelos pais pedófilos, numa ubersexualidade que ignora idade, raça, religião e cultura. Somos o taliban dos democratas, somos a queda da Bastilha ao avesso, somos aqueles que imploram pela prisão, pelo panóptico de Bentham em nossas casas, na sala de Home Theater, na varanda com a churrasqueira no vigésimo andar, na vaga do carro na garagem do condomínio, nas câmeras de TV que revelam as formas intimas da consultora de moda que decora o hall de entrada do prédio, no projeto de playground ecológico que ensina nossos filhos a se divertir sem poluir a natureza de arvores reflorestadas do bosque artificial que cerca nossos prédios, enfim, somos os bárbaros mais desejados desde que a evolução da vida na Terra gerou bípedes. We are the world!


Somos as freiras que rezam diante de Deus e conseguem toca-lo e dizer It smells like teen spirit! Somos as mães do Kurt Cobain que agradecem pela dádiva de um filho famoso e suicida, que nos deixou cheios de grana. Somos os donos da ovelha Dolly ordenhando patentes genéticas de um rebanho doente e manso. Somos a mulher que aborta sua feminilidade em troca de um posto no headquarters entre falos de ouro. Somos as prostitutas que abrem uma grife e vestem seus clientes logo após o orgasmo, mediante contrato de compra e venda. Somos a grife da rua ao lado, que sub-emprega mães solteiras da periferia e lhes pagamos um prato de comida aos sábados e domingos ao lado das maquinas de costura colocadas clandestinamente numa casa de bairro, entre tantas outras. Somos as garotas pardas sem educação que se vestem de branco e levam pelas mãos nossos filhos para passear num shopping enquanto lemos a revista de fofocas que nos atualiza de quem podemos, enfim, ser. Somos o velho viciado em jovens, que compra tickets de futebol para xingar o juiz e bolinar com as coxas os meninos que lhe emprestam a vitalidade perdida. Somos o viciado em pedras que se justifica todas as semanas no divã e sai com frases emprestadas de Lacan e Foucault. Somos o artista decadente que faz instalações e cita Deleuze para ser aprovado numa banca acima de qualquer suspeita. Somos o pai de família que paga suas contas e sonega na sua declaração de imposto, que compra uma franquia para pagar o status que lhe foi prometido desde a escola. Somos esses maravilhosos personagens que, enfim libertos do cativeiro de pensar, apenas vivem e se reproduzem digitalmente. Somos a poeira das estrelas que produz mais maravilhas no universo, na forma de subprodutos a base de cadeias de polímeros que um dia foram, vejam só, seres pré-cambianos rastejantes e jaziam perdidos numa forma densa e liquida e escura no fundo da terra. Somos as maquinas mais perfeitas de fazer outras maquinas mais perfeitas ainda que as precedentes. Somos a evolução dizendo a si mesma: eu me basto!