Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

domingo, dezembro 03, 2006

Inteligencia, quem sabe um dia...


Fazemos da nossa vida uma trajetória quase perfeita, explicada nos detalhes por acontecimentos descritos como se fossem escolhidos por algum diretor de cinema que coloca sua objetiva em nossa direção, sem que percebêssemos. Não é assim, sabemos bem, mas nos comportamos como se fosse. Escolhemos nossos melhores momentos, forçando o esquecimento dos piores. Não podemos contar nossa própria historia sem recorrer aos amigos, parentes e álbuns de fotografias. Agora existem fotoblogs e diversas câmeras digitais, em telefones inclusive. A privacidade da memória é cada vez mais invadida pela oportunidade de cada instante “kodak”. Ficamos mais velhos não a cada ano que passa, mas a cada microssegundo que registramos. Medimos nossa vida em gigabytes, não mais na cronologia dos giros da Terra em volta do Sol. Cada um é seu próprio astro-rei. Sabemos disso. E daí?

Isso tudo só serve para nos lembrar que contar com os outros em nossa historia pessoal fica cada vez mais difícil numa vida em que cada um só é levado a se importar consigo mesmo. Esquecidos da comunidade (que antes incluía a paróquia do bairro, a quitanda, a mercearia, o açougue, a padaria, e agora está toda resumida nos shoppings centers e nas compras virtuais da internet), apartados da grande família (aquela que contava com nossos primos, tios e sobrinhos, agora resumida ao esquema minimalista de casal-sem-filhos-até-a-independência-financeira), sem vestígios da história de nossas cidades, bairros e regiões de origem das famílias de nossos amigos e vizinhos (o que são hoje os vizinhos , talvez algo próximo àquelas pessoas que compartilham conosco as despesas do condomínio e que eventualmente encontramos na entrada ou na saída do portão eletrônico).

Estamos sitiados não só geograficamente, mas sobretudo psicologicamente, pela excessiva atenção dada aos nossos tiques e chiliques, ficamos afrescalhados, infantilizados, doentes crônicos do “mal estar da civilização”, que antes era coisa blasé dos intelectuais e hoje afeta todo mundo que fica “depressivo”. No Japão se contam mais de 32 mil suicidas por ano. Dizem que a depressão aumenta essa probabilidade de morte por "opção pessoal" no mundo todo. E se justificam assim o uso cada vez mais frequente dos tais antidepressivos, os estabilizadores de humor e os já velhos conhecidos psicotrópicos (alcool inclusive) em nome desse mal-estar-individual-globalizado. Educamos nossos futuros velhos (hoje entre seus 30 e 40 anos) para que consigam mais e mais a sonhada “empregabilidade” e assim consigam se manter como “consultores-de-qualquer-coisa” depois da inevitável demissão que os espera. Os jovens dos 20 anos se preparam para ingressar a linha de montagem dos futuros-adultos-em-tercerização-permanente, tratados como gado novo nas planilhas de custo da empresas. E os adolescentes ficam na expectativa do que os espera após a fase dos sonhos, agora cada vez mais virtuais e acessíveis a qualquer um que tem o seu i-pod. Ou seja, cada um na sua coxia, pastando na sua faixa etária, isolado na sua tribo, cultuando seus totens e esperando o tempo passar, alheio ao tempo da vida que sempre houve no planeta Terra, desde que essa enorme massa de rocha quente se esfriou e assumiu sua órbita estável no sistema solar. E então?

É possível ir além dessas insatisfações que herdamos do século XX e que são repetidas a exaustão nos livros de auto-ajuda e nas pós-eternas-graduações? Descontentes em todas as áreas do conhecimento humano nos legaram a sua “voz de oráculo”, tal como se lê na Odisséia e na Ilíada através das vozes que Homero deu aos Tirésias e as Moiras. Porém, não somos filhos de deuses, nem foram nossos pais e avós os semi-deuses que inauguraram o mundo em que vivemos. Todas as tecnologias que hoje nos educam os sentidos nos fazem crer (e temer) o futuro inevitavel dos "sem empregos", sem aquele funcionalismo publico repleto de funcionários de carreira, sem empresas de escritorios abarrotados de gente paga para passar o dia sob o ar condicionado e aborrecendo-se mutuamente. Na verdade, já havia um outro mundo humano bem antes disso tudo, e o século XX pós-guerra nos iludiu a memória coletiva. Ficamos robotizados pela prosperidade economica, mecanicamente ajustados aos processos de vida urbana e consumista, felizes diante da TV e da geladeira cheia de semi-congelados, condenados a assistir nas séries especiais dos DVDs de banca de jornal o que um dia foi esse planeta antes dessa letargia bem educada dos nossos sonhos e ousadias de folhetim.

Quem sabe toda essa tecnologia não se encontre embotada em breve? Quem sabe nossa decepção fique contingente apenas ao mundo que recriamos todos os dias, sem que seja preciso buscar nos seculos precedentes as razões de nosso mal estar, que justificam a nossa covardia diaria dos bons modos e da boa educação.

Quem sabe assim sejamos, enfim, semi-deuses. Quem sabe assim, não tenhamos novas Odisseias para contar e educar o carater de nossos filhos e netos. Quem sabe assim seja possivel abrir novas possibilidades de vida civilizada sob a coragem e ousadia de outros Ulisses, Aquiles, Heitores e Pátroclos. E que os novos Heródotos contem o que está para ser essa outra historia da humanidade neste novo século.

Sem essas perspectivas, de que adianta tanta erudição? Precisamos ir além dos homens hábeis em Excel e Powewpoint, além das senhoras competentes em marketing pessoal. Além dessas gentes que se copiam nos MBAs e nas faculdades de curriculo globalizado.

Que venham as novas gerações, e que nos superem!

E que saibamos ceder o nosso espaço, tão preguiçosamente ocupado pela geração do raciocinio binario, dos "zeros e uns", fracassados e bem-sucedidos, que só raciocinam em preto-e-branco, certos-e-errados.

E que na nossa velhice sejamos felizes em admitir que éramos mesmo muito limitados e toscos, covardes diante das infinitas chances que este planeta sempre ofereceu a todas as formas de vida que atrevidamente souberam se metamorfosear, que de mutação em mutação seguiu adiante, de geração em geração se moldando ao meio ambiente e nele construindo seus nichos e deixando suas marcas e seus descendentes.

Que bela velhice me espera ao descobrir que tudo o que me ensinaram era pura bobagem, tecnica pura de manipulação para ser parte desse mecanismo de lucros e ganhos corporativos e governamentais. E assim, enfim, desiludido dessas falsas promessas e educações, irei enfim me dedicar a aprender a ler cada pôr-de-sol e a ouvir cada gota de chuva.

E enfim, serei útil para a continuidade da vida neste planeta unico, onde a agua e as moleculas de carbono souberam se combinar para se manifestar de forma inteligente.