Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

sábado, outubro 18, 2008

Micropânico


Micropânico

(inspirado em "Take a deep breath", publicado no site "The Economist" esta semana)


Todo mundo sabe que eu entro em pânico quando meu coração pára de bombear sangue para os meus pés, em livre circulação de plaquetas, hemácias, oxigenio e credito para financiar os sonhos de minhas celulas avidas de consumo de nutrientes.


Nos ultimos doze meses minhas celulas têm demandado liquidez e solvencia de meus órgãos centrais, do coração do sistema, onde as válvulas-mestres sequer hesitaram por um instante em alimentar o fluxo de capitais do organismo vivo que me contém.



Agora em pânico, minhas células sabem que essa livre circulação já era. Enfartei, e sei que todos os titulos de três, seis e doze meses já eram. Estamos emprestando oxigênio e nutrientes no "overnight", mais do que haviamos nos acostumado. Para manter minhas pernas andando, falta oxigênio no cérebro. Por isso, ando alucinado.


Agora, o que eu sou é uma paródia de mim mesmo. Minhas reservas de energia são inúteis, pois tenho que queima-las diariamente para minhas atividades mais básicas: andar, respirar, abrir os olhos e defecar. Nenhum orgão se dispõe a emprestar suas reservas aos demais. Por isso, emagreço mais e mais, cadavérico.


Não há negociação entre artérias e veias, bile e intestinos, bolo fecal e glândulas sudoríparas. Na "bolsa de apostas" de meus vagos pensamentos, a ordem é sobreviver com a ração diaria de proteinas e carboidratos que ainda consigo emprestar do meio em que vivo. Cedo ou tarde, os mercados em que operam meus orgãos vitais afetarão os demais membros e sistemas periféricos. Nem simpáticos, nem parassimpaticos.


Assim, acquisições e investimentos estão todos cancelados. Devo pagar minhas dívidas aos meus credores: coração, pulmoes e sistema digestivo-excretor. Nada de alimentar meus músculos com qualquer tipo de "exuberância irracional". Nada de acalentar pensamentos e sinapses ligeiras nos dois hemisférios. Meu mundo interior é plano.


Em cada célula são adiados novos projetos para alguma expansão metabólica. Fábricas inteiras de cadeias lipo-proteicas são deixadas inacabadas. O custo é altissimo em calorias e no emprego de meus órgaos motores, que se atrofiam mais e mais. Minha locomoção se torna mais timida, meus passos mais lentos, a minha capacidade automotiva pede ajuda, sabendo que não há mais demanda para seus serviços. Sinto-me imobilizado. Meus orgaos sensores, desempregados. Perdi a libido, envelheci precocemente.


Quando ainda funcionavam em mim, meus orgaos superiores eram ricas economias de crédito de carbioidratos, lipidios, vitaminas e adrenalina, num ritmo contínuo de trocas de moléculas que eram mais e mais valorizadas nos pregões em que minhas enzimas operavam sem qualquer tipo de regulação estrita. Eu era livre, e minha metabole era o mundo inteiro de meus órgãos em perfeita conexão.


Agora estouro em bolhas, sinto minha recessão. Depreciado, sou inútil na acquisição de novos nutrientes. Sinto que serei deixado a própria sorte, na carência de crédito de alimentos para manter-me vivo. Preciso que alguém me governe. Preciso de comida na boca, água no corpo, banho e cuidados médicos. Preciso de regras, preciso obedecer a algo que me mantenha seguro, e quando eu falhar novamente, que esse governo sobre mim seja o melhor lugar para se estar.


Isso é puro pragmatismo evolutivo, nada de socialismo predatório da sobrevivência entre as melhores espécies!


Essa ajuda externa aos meus órgãos vitais será algo passageiro. Que alguém me alimente nas necessidades básicas, enquanto for possível esse ônus a sociedade, durante esse micropânico que não me abandona, que não se cura. Se eu pudesse me resolver sozinho, autonomamente, seria ideal. Mas há muito abandonei-me na heteronomia.


Preciso de um governo central, de um complexo-pentágono-militar, algo mais sólido do que o divã onde meu analista de mercados inconscientes de apostas cuidava de explicar as volatilidades de minhas taras, das minhas luxurias consumistas, meus devaneios de novo rico. Preciso de governo para isso tudo e algo mais.


Na rua principal eu preciso de um muro sólido onde me apoiar. Todos os caminhos devem me levar a Roma, quero dizer a Washington. Lá os politicos e seu presidente conseguirão me explicar toda essa fobia irracional que sinto, e nem ligo se eles todos falharam em fazer isso pelo seu país e seu sistema financeiro. Basta que eles se comuniquem comigo, que coordenem meus passos rumo a segurança de meu funcionamento cardíaco-respiratório. Meu sistema linfático agradece!


Já foi assim nas crises anteriores, com nossos avôs se jogando pela janela dos altos edifícios ao verem suas fortunas destruidas da noite para o dia. Se demorar a agir, terei a mesma sorte. A inconsistência alimenta a incerteza. Meus pânicos se condensam em miasmas insalubres pelo meu corpo. Pneumotórax! Pneumotórax!


É hora de liquidar com essas sequelas todas, coordenar minha saude em estado quase falimentar. O preço do petroleo caiu e a inflação está cedendo, posso enfim comprar o melhor da cesta basica e nela me locupletar de alimentos essenciais para meu fluxo retornar a normalidade. Até um corte na taxa basica de juros é possivel e me seria bom operar com mais credito sanguíneo entre o abrir e o fechar das válvulas mitral e tricúspide. E quem ainda duvida do poder restaurador dos bancos centrais de sangue! Preciso injetar sangre fresco!


Seja o que for decidido na América pelo congresso, todos devem seguir seu exemplo e coordenar-se para o resgate da livre circulação de nossos inconscientes corpos e mentes. Que assim possamos recapitalizar nossa atividade motora e estabilizar nossos humores, e não apenas se contentar em guardar dinheiro debaixo dos colchões e amestrar nosso pânico covardemente. O que é bom para a América deve ser bom para a Europa e bom até para minhas ilhotas de Langerhans e meus Glomérulos de Malpighi.


Ufa! Que bom saber que tudo isso não passa de um insignificante micropânico, que passará logo que eu voltar a minha microvida, imerso nas minhas microexpectativas, conforme as leis sagradas da microeconomia que rege nossas vidas sempiternamente.


Ave, Júpiter! Ave, Marte! Ave, Bernanke! Ave, Paulso