Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

terça-feira, julho 14, 2009

Errare Humanum est


Tem uns dias
Que eu acordo
Pensando e querendo saber

De onde vem
O nosso impulso
De sondar o espaço

A começar pelas sombras sobre as estrelas-las-las-las
E de pensar que eram os deuses astronautas
E que se pode voar sozinho até as estrelas-las-las
Ou antes dos tempos conhecidos, conhecidos

Vieram os deuses de outras galáxias-xias-xias
Ou de um planeta de possibilidades impossíveis
E de pensar que não somos os primeiros seres terrestres
Pois nós herdamos uma herança cósmica

Errare humanum est
Errare humanum est
Errare humanum est
Errare humanum est

Nem deuses, nem astronautas
Eram os deuses astronautas

Nem deuses, nem astronautas
Eram os deuses astronautas

Dez
Nove
Oito
Sete
Seis
Cinco
Três
Dois
Um
Zero
(letra de Jorge Ben Jor, do disco Tabua de Esmeralda, 1974, quando os homens ainda eram deuses que haviam sido até astronautas, mas longe dos digitalismos e outros atavismos que nos condicionam a alquimias que não são as nossas paixões, agora reduzidos a simular em passividade contínua a falsa passionalidade de um mundo sem deuses, nem astronautas)

sábado, julho 04, 2009

Digital wisdom


Nas ultimas décadas, foi possível ver como os conselhos dos mais velhos cairam em desuso, ou mesmo no ridículo, por pura obsolescência. Novas tribos e novos caciques, com novos rituais e seitas, desafiaram as tradições e com novas modalidades de traições fizeram sua política de extermínio com novas regras, sem derramamento de sangue nem guilhotinas, apenas com marketing eficientissimo e consumo indisciplinado. Os jovens se vendiam mais e melhor, deixando aos velhos o lugar de consumidores eventuais ou apenas aposentados que financiavam os mais novos em suas aventuras entre as prateleiras cheias de promessas de mundos novos a serem consumidos e consumados. Um admiravel novo mundo de paz e prosperidade, em um dos lados do muro. Do outro lado, bem, apenas se dizia que era gelado, inóspito e monitorado por espiões do governo o tempo todo. Sem liberdade alguma...para consumir.

Com a queda do muro, era o mundo todo um novo quintal para churrascos e celebrações, com direito a musica e danças imitadas pela TV e nos cinemas, com personagens falando de suas aventuras pessoais em busca da redenção individual e, quem sabe, enfim, o sucesso. Lembro-me de ir todos os sabados a noite num snooker bar, com cerca de 10 mesas de bilhar, todas repletas de tacos em punho, bebidas e cigarros acesos, com telas mostrando os videoclipes do momento e a conversa sempre em torno das nossas vidas e ignorando as imagens que serviam apenas de pano de fundo para nossa presença. Na hora da fome, servia um hamburguer mal passado na hora e nada de celebrações até o sol raiar. A vida era banal mesmo e sabíamos disso. Mas até isso seria passado a limpo. Com o tempo, cresceu a necessidade de justificar até a existencia trivial de qualquer um que se reunia sabado à noite para encontrar com seus amigos. Cada um era parte de um todo, agora globalizado, repleto de significados não somente para sua familia, mas para sua pátria, seus patrocinadores, pois a liberdade e o direito de consumidor eram os novos lemas dessa nova ordem mundial. Viva o consumidor!

Dali em diante ser apenas mais um na multidão não seria mais possível. Todos devem ser vencedores no que fazem, seja na carreira profissional, seja na mesa de bilhar, seja preparando o churrasco, seja manuseando os talheres no almoço de domingo. Cada momento insignificante era o mais sublime, cada encontro casual uma nova oportunidade para reinventar a vida pessoal e até, quem sabe, recomeçar um sonho de juventude perdido décadas atrás, cada passo era único numa sequencia (im)previsível de atos e seus (in)consequentes efeitos. Oh! Essa liberdade que nos outorgava a tarefa de Sísifos, em moto-contínuo rumo ao inevitável encontro com a ultima e inescapável verdade de nossas vidas, onde somos únicos para nossas familias, amigos e vizinhos, e até mesmo para os eventuais biografos de nossas trajetórias, como se pudessemos ser restos mortais de uma humanidade perdida entre vestigios de civilização que ainda encontramos nas imagens de revistas e videos na TV. Todos são equivalentes e os mesmos na representação de uma mesma e única raça, a espécie humana agora santificada pelo imperativo da realização do marketing pessoal e do consumo de si mesmo, como sacrifício no altar das aspirações mais mediocres e comuns a todos que respiram e expiram algum tipo de perfume conhecido. Eis a evolução darwiniana em suas ultimas consequências.

Nossas celebridades são nossas a cada instante que as vestimos, comemos, falamos e logo em seguida descartamos. Nossa antropofagia consumista nos ritualiza entre totens e fogueiras santas nos altares familiares que erguemos diante dos espelhos e nas vitrines de nossas cidades, onde respeitamos o direito e a liberdade de cada um ser e se reconhecer como uma coisa, um objeto, um artefato a disposição de todos que desejam nos adquirir pelo preço que valemos, conforme sejamos propriedade e proprietarios de nossas imagens e suas réplicas. Em suma, virtualidades numa caverna de pinturas rupestres em que somos o rascunho da espécie perfeita, a mais adaptável e adaptada à vida sobre uma superficie plana e contínua de cidades e habitações humanas, sem muros, sem distinções, sem singularidades, todos num mesmo credo, sob uma mesma moeda, um mesmo deus, sob as mesmas musicas e costumes, com as mesmas imagens na TV e nos cinemas, celebrando as mesmas conquistas e vitorias sobre a auto-imposta insignificancia diante desse horizonte que se estende ao infinito de produtos para consumo imediato, nos quais nos incluimos desde o nascimento, quando nossos pais nos filmam e nos fotografam, postando nossas imagens na internet e na empresa onde trabalham. Another brick on the wall...

Nossas celebridades são a política possível do homem-mercadoria, sendo a imagem publica que nos representa em todos os âmbitos, publico e privado, são a nossa grife, nossa marca que nos distingue das demais espécies, a voz comum ao nosso universo de aspirações humanas, que antes era privada de reconhecimento e agora é instantaneamente reconhecivel, imediata, sem necessidade de mediações e argumentos, sem que as palavras insistam em nos atrapalhar a comunicação em massa, perfeita para as multidões em que habitamos, onde somos as réplicas perfeitas de nossos ídolos, nossos heróis em suas tragédias, a sucumbir nas tramas do sucesso e da fama, sangrando no altar de suas misérias e expiando por todos nós as suas (nossas) falhas de conduta. Eles são o que nós desejamos ser individualmente. Nós somos massificados para ser o que podemos ser indistintamente. Eles justificam a nossa mediocridade. Nós consumimos através da midia a santidade deles, deuses humanos que jamais seremos em nossas trajetórias individuais de consumo e reiteração dos sons e imagens que emanam deles, nossas réplicas melhoradas, os quais nos chegam pelas telas de plasma e cristal líquido.

Uma sabedoria tal que, assim codificada, nos exige apenas um ato único de liberdade: consumir e descartar logo em seguida.

Vidas descartáveis, desde o berçario.

Sem passado, nem futuro. Apenas o eterno presente que se multiplica nas imagens e sons a disposição para download na rede.

Toda a sabedoria necessária é agora digital.
Toda a liberdade possível é agora consumível.
Eis a paz jamais imaginada e mais fácil do que qualquer revolucionário sonhasse haver.

Só nos custa a permanência na insignificancia até o descarte final.

Amem!