Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Não me digam que já sabiam disso tudo...


Me disseram um dia que seria possível escrever o que eu quisesse após alguns anos de educação e prática de leitura, e eu acreditei nisso. Também me disseram que seria possível ter tudo aquilo que eu desejasse, todos os sonhos seriam possíveis, todas as conquistas e façanhas, seja nas montanhas, nas selvas, no mar, ou aqui mesmo na terra de concreto armado. Até ser astronauta, quem sabe? Andar por sobre as águas, entre as multidões e ser invisível, voar como um pássaro e mergulhar como outro nas águas de algum mar do mediterrâneo. Ser rico, ter tudo o que quisesse comprar. Ser inteligente, saber tudo o que se passa por fora e por dentro de cada coisa. Ser imortal, estar presente o tempo todo e não precisar de tempo algum para ser o que se é. Ser alegre, sorrindo em cada gesto como numa dança em sua harmonia natural. Ser belo, refletindo a pureza do mundo ainda em evolução no cosmos em expansão, surpreendentemente estético e sonoro. Ser em cada coisa a medida de suas possibilidades, no limite entre a não existência e sua confirmação inesperada. Ser, enfim, uma revelação das divindades vivas na Terra e estar entre suas criações no mesmo instante em que são criadas. Ser o Verbo falando por todos os poros e células de meu corpo, plasmando a vida e a morte instantaneamente, segundo a segundo, na impossibilidade do esquecimento do momento anterior, em permanência contínua da memória, valorizando cada forma de vida próxima, presente ou ausente, cada milímetro de chance de ser, cada ínfimo segundo de olhar trocado com alguém que se aproxima, na caça pelo contato essencial, como se fosse o último átomo de oxigênio a entrar pelos meus pulmões e me permitir um pouco mais de vida consciente, antes de cair na inconsciência de meu lugar preexistente, socialmente pré-estabelecido e limitado pelas convenções do uso das palavras no dicionário, nas roupas compradas no shopping, no trabalho de carteira assinada, no café da manhã iluminado pela janela que resta de luz natural que entra pelo concreto, na cama arrumada para deitar o corpo usado pela exploração maquinal da mente pelos dias adultos, na toalha que enxuga a água que cai pelos canos que lhe roubam de seu curso natural, no barulho da chuva que cai em janeiro me lembrando de que mais um ano começa nos doze meses do calendário que nos determina o ritmo de desgaste produtivo de uma vida confinada em si mesma. Isso também me disseram, sem me contar em detalhes o que viria a ser a minha vida após sucessivas adaptações e releituras dos mesmos sonhos sonhados todos os dias.

Todos os dias eu vi os velhos sonhos requentados nas palavras ditas em frases feitas, nos olhares cansados e já habituados aos lamentos de sempre correndo ao longo das ruas pelo fim das tardes. Todos os dias acompanhei os risos contidos de quem se vê melhor acompanhado pela televisão do que pelos demais na mesma sala. Todos os dias eu li nos jornais e revistas os mesmos pensamentos de quem não sabe se comemora ou lamenta a vida, na indecisão das coisas entendidas mas ainda não sentidas, pelo deserto de sensações que a vida não lhes deu e mesmo assim insistem em cavar no chão das coisas ditas habitualmente. Também vi os jovens ficarem velhos como seus velhos um dia fizeram quando jovens, deixando cair ao lado as sementes da boa nova e colhendo somente o que era possível e previsível, sendo aquilo mesmos que não queriam mas lhes foi dado como herança. Como uma reza sagrada, ouvi as palavras repetidas e os gestos semelhantes de todos os que choraram de alegria pelos nascimentos e casamentos, e de tristeza pelas mortes e separações. Nada pude fazer de diferente nesses cantos das gentes que se repetiram nas casas de amigos e parentes, como fazemos desde o inicio dos tempos quando inauguramos as tragédias e as farsas, atuando no palco de nossas famílias e sendo traídos nos palácios e confinados nas masmorras de pedra, de concreto armado, de paredes pintadas de branco, ouvindo as músicas de nossos sons espontâneos que caracterizam a nossa espécie. Eu digo o que vivi .

E além dessas coisas todas que me envelhecem eu sei que existe uma parte de mim ainda inexplorada, percebida como um ruído lá no fundo das coisas conhecidas, além das palavras, além das memórias, além dos olhares de reprovação e das palavras de conforto, longe de tudo o que conheço e que me instiga a escrever mais, a falar mais e a buscar mais pessoas e a lhes ouvir atentamente, quem sabe se alguma delas não está percebendo o mesmo que eu? Os sons e cores novos que eu experimento na percepção do meu “eu” em movimento são os tons que me tocam fundo lá na alma e eu sei que dizem uma outra coisa que ninguém jamais havia dito, uma quase inconseqüência de ser que não se faz possível em ambientes mais humanizados, e por isso mesmo mais desgastados dessa “humanidade” que já foi tão envelhecida e usada como uma moeda barata. Cada passo adiante é uma conquista, não em nome das auto-ajudas e auto-estradas abertas pelos “vendilhões do templo”, mas uma outra Ilíada, com novos deuses e uma nova teogonia a ser cantada, sem religiosidades, sem racionalismos, sem garantir nada em troca, sem padrões a serem traçados em gráficos e equações, uma nova ciência de vida que poderia bem ser a minha e de mais ninguém, uma queda livre de forças durante o movimento, uma anarquia que inaugura a minha existência de fato e não conforme as expectativas, quase uma loucura, quase uma invenção sem patentes, sem mercados, sem linhas de montagem, sem o dia de amanhã, sem o horizonte para o sol se pôr e nascer, sem estrelas mapeadas, num vazio que não assusta mas apenas realça a possibilidade de uma existência inédita que não se preocupa em se repetir todos os dias num padrão de cadência e conforto, sendo aquilo que se destina a ser. Essa parte de mim não morre nunca, fica ali, sempre possível, sempre existindo além de qualquer coisa que se possa dizer da vida, incrivelmente resistente a qualquer tipo de justificativa ou glorificação. E que se revela quase sem querer em alguns instantes em que se sabe instintivamente que a vida é a coisa mais preciosa e bela que existe, que vale cada novo instante possível, cada nova tentativa de superação do belo e do perfeito. Há quem diga que isso é paixão. Há quem tenha se apaixonado pela vida e diga que isso é amor. Há quem tenha amado na vida e garanta que isso é a plenitude. Há quem se sinta pleno de vida e diga que isso nada mais é do que a vida em si mesma. Há quem perceba a vida desse modo e diga que nada precisa ser dito. Eu digo o que é possível de ser dito, sabendo que nenhuma dessas idéias poderá ser mais completa do que a vida em si mesma. Talvez sejam necessárias novas palavras, novas idéias, novas composições que nos possibilitem perceber mais coisas que a vida já nos revela e que ainda não sabemos como observar.

Por enquanto, é a vida que ainda nos observa como fenômeno, como parte sua que insiste em não se fazer coesa e integrada. Ainda somos cativos de nossa primitividade, nos primeiros passos que ensaiamos rumo a existência fora dos limites de nossa esfera terrestre, cada vez mais possível tecnologicamente, mas ainda distante de ser realizada em nossos pequenos passos ético-civilizacionais. Ainda somos como pequenas formas de vida em colônias que habitam uma gota d´agua, prestes a despencar da folha em que se sustenta. E como essa condição é ao mesmo tempo bela e assustadora. Talvez a gota caia num oceano e se uma a infinitas outras, ampliando nossas chances de viver nela. Talvez essa gota seja única e caia num solo seco, e nada mais reste depois da queda. O que nos define a humanidade é a existencia quase miraculosa entre essas duas possibilidades .