Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

segunda-feira, novembro 10, 2008

Microesperanças


Microesperanças

Com taxas de juros zeradas, eu posso finalmente viver o meu eterno hoje. Não existe mais o dia de amanhã. Abolimos essa angustiante espera pelo dia seguinte, onde tudo se resolverá. Que tudo se resolva agora, ou nunca!
Que todas as decisões sejam tomadas nesse exato instante, que nossos heróis sejam celebrados antes de fecharmos os olhos e cairmos na inconsciência de nossos sonhos. Enfim, que não exista mais o passado!

Isentos de juros, não teremos mais que solidarizar o que fizemos com o que faremos. “No inicio era o verbo!”, agora nós somos esse verbo fazedor de coisas, sem ônus, sem limites, sem responsabilidades adicionais a serem cobradas no dia seguinte. Não devemos mais nos manter nos limites de nossas possibilidades, mas buscar os limites de nossos sonhos. Ícaros, elevem-se aos céus! Sem medos, sem reservas, sem segundas considerações, sem custo algum para se fazer presente, o céu anunciado na Terra, enfim nosso! Ou melhor, nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, nossos juros são os mais elevados do planeta. Carregamos o fardo de Prometeu pela descoberta do fogo e sua entrega aos mortais. Lá no Olimpo, reina o dia eterno, aqui somos apenas um vestígio dos dias anteriores, sem futuro, sem presente, assombrados pelas sombras de nossas escolhas inconscientes. Os jesuítas do Banco Central catequizam-nos a cada ata do Copom, nós os pagãos, os gentios, cuja conversão ao mercado financeiro não basta. Não importa se direcionamos nossas economias em ações, se trocamos nossa madeira e nossas crianças por bugigangas, na forma de “ações ordinárias” ou títulos de alguma coisa em troca. Devemos mais gestos e atos de fé nesse deus mercado. Devemos nos resignar aos pronunciamentos dos gestores de fundos, dos soberanos ministros da fazenda, dos presidentes de bancos centrais, aos analistas oráculos financeiros, aos rábulas que proliferam na forma de microempresários, negociando conosco, os selvagens que teimam em não aceitar a inevitabilidade do paraíso prometido pelo mundo onde só existe o dia de hoje e nada mais! Como não possuímos todas essas virtudes preconizadas pelos sumo sacerdotes do deus mercado, pagamos penitencia na forma de juros sobre juros, compostos, amortizados conforme a nossa capacidade e mérito em empenhar a nossa liberdade em nome da confiança que tais pontífices depositam em nós, quer dizer, em nossas contas bancarias de saldo devedor. Pois todo pecador é um devedor.

No Olimpo, no mundo dos juros zerados, isso não acontece. Lá eles podem empenhar o que não possuem e ainda gastar mais. Os governos socorrem seus bancos, seus fiadores, seus agiotas, seus gastos no cartão de crédito e até seus inimigos! Eles possuem a virtude suprema de acreditar que todo ser humano é digno de consumir mais do que necessita e que isso nos manterá vivos como a espécie eleita pelo Todo Poderoso a ser a líder das demais no rumo da evolução da vida na Terra. O deus mercado é a figura benfazeja de nossas virtudes que emanam do lodo de nossos vícios, como Mandeville vislumbrou outrora! Lá a cada microsegundo renasce a microesperança de que cada microempresário pode triunfar com suas microações no mercado que, a cada dia se revela como a baleia que engoliu Jonas. Eles oram e seu deus os escuta. Juros zero! Calotes perdoados! Dividas roladas! Bancos saneados pelo Estado! Empresas quebradas mantidas com dinheiro publico!

Quem sabe o dia em que não teremos mais a necessidade de nos lembrar dos dias passados e que há sempre um dia de amanhã! Quem sabe não teremos a mesma alegria! Quem sabe um dia todos nós possamos nos convencer de gastar tudo o que temos e empenhar tudo o que devemos para ter mais do que não precisamos e assim obteremos a graça máxima concedida a quem não se importa com dia de amanhã, a quem acredita plenamente no deus mercado que tudo dá, tudo provê, tudo escuta e tudo pode.

Nossas microesperanças somadas, quem sabe, um dia poderão nos levar ao paraíso dos juros zerados! E que existam ainda muitos chineses e indianos para que sejam explorados e sua produtividade paga miseravelmente pelas multinacionais que os exploram seja o lastro que precisamos para nos isentar de culpas e quaisquer noções de custo e inflação!
Pois além do Olimpo, há o Hades!

Para além da luz do dia e das estrelas da noite, há um mar de almas inertes no rio Estige! Que dizem, fica lá no Oriente, além dos desertos da Arabia e do Gobi.

Que ocupemos nosso lugar no Olimpo, entre os deuses que mantém a ordem soberana dos juros zerados para todos os fieis seguidores da lei do consumo!

Por hora, ainda estamos aqui, aquém de nossos sonhos, conforme nossas microesperanças.

Ora e labora!

Ora e consome!