Vestigios da Humanidade

Este blog é um convite a reflexão sobre a humanidade, seus vestigios, numa arquelogia viva que busca encontrar o que resta ainda da raça humana, cada vez mais robotizada, dotada de uma razão instrumental e redundante, não essencial, restrita ao mero papel de espectadora do espetaculo que protagoniza.

sexta-feira, junho 26, 2009

R.I.P. "Requiescat in pace" or just "Rest in Pixels"


Era uma vez um mundo que não tinha pixels, mas apenas imagens fotograficas que movimentadas em sequencia - em intervalos cada vez menores - nos iludiam acerca do que visualizavamos. Acompanhadas de sons e efeitos visuais, era certa a viagem ao outro lado do espelho. Nada de virtualidades. Tudo era real, com maquiadores e costureiras a postos para ornamentar seres ainda humanos nos palcos diante das câmeras. Era assim que se construiam industrialmente os mitos que deveriam se tornar obsoletos à medida que outros era criados e replicados. Uma linha de montagem de sonhos para as massas. Música e cinema faziam a dobradinha imbativel. Os senhores dos anéis que celebravam essa união mecenavam a política e ditavam os rumos das artes e da cultura dita popular. Um mundo cada vez mais global, sobretudo após a queda do muro simbólico que nos dividia entre massas de consumidores e massas de camaradagem.

O mundo digital teve uma antecipação de cerca de três décadas com o surgimento de uma figura que cantava, dançava e compunha suas musicas em tempo real, 24 horas por dia, sem que houvesse internet ou google ou twitter. Era um personagem que desde criança sabia cantar suas musicas e dançar seus ritmos, puxar o coro da igreja de sua familia e inventar os amigos imaginarios que todos podiam ver. Nada digital. Seus estudios podiam ser numa poderosa gravadora ou num improvisado palco na rua ao lado. Suas performances eram uma mescla de James Brown e Fred Astaire, sem direito ao "copy/paste" ou remix. Seus vinis registravam mecanicamente sua voz com os timbres que a industria depois copiaria a exaustão. Em suma, era uma espécie de "geração espontânea", um elo perdido entre a era pré e pós-digital. Antes havia a limitação do script para quem houvesse ser chamado de estrela, com regras de conduta e passos ritmados pela moral civilizatoria do lado vencedor. Uma democracia de "winners". Do outro do muro, os "losers". Depois dessa mutação pop, as regras eram outras, cambiáveis ao sabor do momento, conforme quem estivesse ao lado. A cor da pele mudava com os tempos, que a cada dia clareavam mais e mais os nossos preconceitos e nossos conceitos sobre o que é ser um vencedor. A vida imitava a paródia.

Enfim branco, enfim rico, enfim mundialmente conhecido, enfim tornado um produto de venda certa, enfim copiado pelos demais, enfim casado com a filha do astro maior da era que o precedeu, o que poderia dar errado? Afinal, do lado de cá do muro só estão os vencedores, certo? Ou talvez seria uma "terra do nunca", esse lugar geográfico em que o entretenimento e a política se misturavam e formavam uma outra coisa na qual quem ali está não tem mais outras escolhas a não ser viver a paródia de si mesmo?

Uma tragédia que o mundo pré-digital só podia conceber como desvio, como aberração, como uma mutação mal-sucedida, uma gênese já concebida em desgraça, como seria de esperar daqueles que um dia eram escravos nos campos do sul e agora, seus descendentes nas grandes cidades do norte tentavam emular uma vida branca, com clareza de própositos mais nobres, diante de um deus alvo, puritanamente justo e bondoso. Esse lado de cá do muro era bom demais para ser verdade. As mentiras não tardariam a aparecer.

Precoce, o elo perdido em forma de astro pop não teve a seu favor um mundo digital que pudesse torná-lo melhor, numa versão 2.0 que o redimisse, onde pudesse ser negro outra vez, onde não tivesse pulsões que o levassem a atentar contra si mesmo, onde sua vida privada seria publicada em blogs, comunidades virtuais e em tempo real se tornasse o ideal de consumo sacrossanto das massa em ambos os lados do muro. Não houve tempo.

Em poucos dias começaria uma nova temporada de shows, com novas musicas e uma nova imagem, talvez digitalizadas para esconder suas humanas imperfeições que a cada dia que passa rejeitamos mais e mais. O humano é algo que evitamos com pureza dos pixels, que revelam o nosso lado vencedor, seja qual for o lado do muro que ocupamos. Não houve tempo.

O tempo digital o tornará, pixel a pixel, eterno, melhorado nas virtudes e esquecível nas fraquezas - sua humana imagem no espelho. O tempo real nos consome com suas pequenas demandas ainda humanas. Digitalmente, elevamo-nos aos céus, onde agora o elo perdido do pop descansará em paz, a cada download de suas aparições fantasmagoricas.

E quem disse que o céu não existe?
Só não se sabe em que lado do muro fica.
Mas isso já não importa mais a nós
que vivemos nesse mundo ideal-digital.


Human Nature

Composição: Michael Jackson

Looking out
Across the nighttime
The city winks a sleepless eye
Hear her voice
Shake my window
Sweet seducing sighs

Get me out
Into the nighttime
Four walls won't hold me tonight
If this town
Is just an apple
Then let me take a bite

If they say --
Why, why, tell 'em that it's human nature
Why, why, does he do me that way
If they say --
Why, why, tell 'em that it's human nature
Why, why does he do me that way

Reaching out
To touch a stranger
Electric eyes are ev'rywhere
See that girl
She knows I'm watching
She likes the way I stare

If they say --
Why, why, tell 'em that it's human nature
Why, why, does he do me that way
If they say --
Why, why, tell 'em that it's human nature
Why, why does he do me that way

I like lovin' this way
I like lovin' this way

Looking out
Across the morning
Where the city's heart begins to beat
Reaching out
I touch her shoulder
I'm dreaming of the street

If they say --
Why, why, tell 'em that it's human nature
Why, why, does he do me that way
If they say --
Why, why, tell 'em that it's human nature
Why, why does he do me that way

sábado, junho 20, 2009

Paradise reloaded




Cada fase do jogo nos induz a outras, cada superação denota outras possibilidades, sejamos crianças ou adultos, etapa por etapa, destravados, ganhamos créditos conosco para nos insinuar a outras jogadas, outras permutas, novas moedas, escambo psicológico.

Nas lan houses está a nossa casa digital, nossa comida, nossos remédios que atenuam nossa indiferença ante uma vida burocratizada, insossa, sem valores transcendentes, nada que se compare ao meu score num game, ao nick name conhecido nas vastidões virtuais, meu ego em bites, espalhado em pedaços de mentes que se combinam em outros lugares, sob a tutela de um software que quebra meu código fonte e me insere em outras redes, com outras configurações possíveis, numa regressiva autoconfiguração que supera meus dilemas existenciais, que rompe com meus bloqueios psicológicos, que me exaspera acima das mediocridades às quais fui programado para ser um cidadão civilizado, enfim revelado como herói de minha única saga, customizada para meus desejos incubados nesse cristal onde adormecia pré-digital.

Outros mundos, outras personas em máscaras e cavernas, em rituais sagrados que digitalizados nos sacramentam as novas revelações, abrem-se as portas da percepção não limitadas aos psicotrópicos, cuja ilusão tem hora e lugar para acabar, mas numa outra via, uma terceira via, cuja economia dos sentidos nos faculta acesso ao custo de nossa subversiva vida civilizada, um outro eu que ao fugir da rotina, após a execução de cada tarefa bem ajustada para a minima socialização esperada, parte rumo ao óraculo que nos espera parcimoniosamente nos games, instalados nos códigos-fonte dessa outra vida que ainda em vida nos redime, a cada conquista, a cada fase desbloqueada, a cada frase dita em gestos e imagens que, numa tela, nos mostram quem podemos – e desejamos – ser.

Ressurreição digital.

Eternidade digital.

Paraiso digital.

Os Campos Elíseos em tonalidades de ciano, magenta e amarelo, numa paleta de cores que nem os renascentistas pintaram. Além das realidades opacas que tímidas pinceladas copiosamente buscaram, agora existimos em campos de telas que são industrialmente construidas por celibatários programadores de som e vídeo, escribas dessa nova religião que se inscreve nos hipertextos subjacentes a cada movimento que o joystick faz, extensão do meu corpo atrofiado, resgatado da pre-digitalização, jurassicos que éramos até nos reconhecermos numa tela de cristal líquido que mostra o que desejamos ser. O ser desejado sendo o que realmente somos. Nada mais importa. Não existe a fome nesses campos de pixels, nem a miséria, nem os sindicatos, nem as corporações e seus políticos corruptos, apenas mocinhos e bandidos, o Bem e o Mal, o ideal platônico ao alcance de apenas alguns movimentos no mouse, ou no player, ou mesmo o corpo com sincronização digital numa tela de sensores de movimento. O orgasmo pleno, sem vacilações, a über-existencia, a pluri-presença, a hiper-cognição, os movimentos exatos para cada tarefa, sem hesitação, numa valsa sem tropeços, em perfeita sintonia com o meio que nos envolve, sem distanciamentos que embotem a nossa eficácia, totalmente ajustados para os fins a que nos propomos, em busca da maxima eficiencia para consecução dos nossos sonhos. Sem limites. Nirvana!

Tudo o que o século XX tateou com fotografias, filmes e obras de instalação em museus e parques públicos, agora é passado. Eis a nova aurora da humanidade sempre antes desejada, a era digital. A vida melhorada pelo homem ao coro dos anjos digitais, num céu melhor que qualquer anterior, nessa nova era clássica de jogos e simuladores de vidas que não são mais passadas, nem futuras, mas presentes. Enfim, a vida ideal no presente. Em camadas de memória cujos mnemônicos nos recriam numa outra estrutura de DNA, sem as fragilidades das instáveis combinações bioquímicas que jazem em nossas células.

Nosso DNA digital não é suscetível ao câncer. Podemos reescrevê-lo e melhorá-lo indefinidamente. Um corpo imperecível, a altura da ilimitada natureza de nossos desejos.

Vida sem morte. Seria ainda vida?


sábado, junho 13, 2009

Digital forever


Nos EUA acabou a era da TV analogica!
Só as digitais, e nada mais!
Quem estava na analogica está agora desconectado, cego!
É o fim de um tubo de sonhos ideais, que reproduziam a vida como numa fotografia. Vivia-se em busca das imagens da vida fora de casa. Agora, nunca mais outra vez!

A ilusão digital recria a realidade em simulacro, sem qualquer necessidade de verossimilhança. Estamos na era dos games, dos filmes com personagens digitais, impossiveis de ver nas ruas. Estamos isolados pelo impossivel, sem qualquer chance de se reconhecer neles, os impossiveis.

Mais do que nunca, agora há um abismo entre os velhos-analogicos e os contemporaneos-digitais, os pos-modernos, que vivem sua angustia de inadaptação perene diante de uma realidade que os destrói para em pixels torna-los outros.

Milhoes de norte-americanos ficaram para trás, sem essa janela de sonhos que tornou possível a paz e a ordem na maior democracia do planeta nos ultimos 60 anos. Um novo muro se ergue, digital, imenso, maior que o maior dos everests, mais abissal que o mais fundo dos oceanos, pois agora são duas civilizações diante de si mesmas. Antes e pós-digital.

Pixar e Dreamworks eram experimentais, agora são mainstream.
Como o iphone e a internet wireless.
Ubiquidade, eternidade instantanea.
Obsolescencia imediata.
O Deus de cada um morto a cada instante e recriado logo após. A um clique!

Olhares orkutianos, mensagens twitterizadas, produções youtubezadas, enfim, a vida que se publica nunca foi tão privada, privada de sentidos, ausente de um espaço publico que se pulverizou em zilhões de pedaços de memoria digital.

Nossa memória digital de vidas passadas cabe num chip, numa banal cópia de ipod chinês, nunca tudo foi tão irrelevante, até mesmo a tradicional cena da familia diante da TV. Já era.

Admiravel Mundo Novo.
Nossa tão sonhada eternidade chegou!
Nosso infinito digital!

sábado, junho 06, 2009

Gnossiennes do seculo XXI


Festejamos aquilo que nos sobrou para viver. Dançamos nossas valsas, sem ritmo algum.
Sobrevivemos aos vestigios daquilo que matamos em nós.
Cultivamos a carne fiel de nossas vestes.
Aqui somos apenas parte do show.
Apagamos as luzes todos os dias, mesmo quando ainda nos aplaudem diante do palco.
Cansados, dormimos sem sono.
E esquecemos dos dias e noites que viviam conosco.
Somos vestigios vivos daqueles que um dia foram chamados HUMANOS.